terça-feira, 21 de abril de 2009

Pedro Almodovar e a compreensão do feminino


Série Y
"Que Fiz Eu para Merecer Isto?"

Mulher à Beira de Um Ataque de Nervos
Por Vasco T. Menezes

As relações familiarese pessoais por Pedro Almodóvar. No centro desta comédia de humor absurdo, uma dona se casa viciada em anfetaminas, cola e detergente. Escabroso e grotesco, mas também hilariante e comvente.

Gloria (Carmen Maura), dona de casa madrilena, leva uma vida difícil: para além de ter de se preocupar em pagar as contas do gás, água e electricidade (em vias de serem cortados), divide ainda o apartamento, exíguo e sobrelotado, com o marido insensível, Antonio (um taxista com dotes de falsificador), dois filhos ainda pré-adolescentes mas bastante "avançados" (o mais velho, Toni, trafica droga, e o outro, Miguel, deita-se com o pai de um colega de escola) e a sogra diabética e avarenta que vende água com gás e madalenas, fechadas à chave num armário, aos restantes membros da família.

Não admira por isso que Gloria seja viciada em anfetaminas (é preciso arranjar toda a energia possível para conseguir ainda trabalhar como mulher-a-dias) nem que cheire cola ou detergente, a única maneira de encontrar a paz no caos que a rodeia.

É esta a existência tragicómica da protagonista de "Que Fiz Eu Para Merecer Isto?" (1984), o quarto filme de Pedro Almodóvar. Nele se estabelece uma complexa teia de relações pouco (ou nada) ortodoxas, através de um enredo tresloucado que quase desafia a descrição, carregado de momentos de enorme poder subversivo e movido por uma energia caótica e sórdida, à época um óbvio instrumento de ataque à repressão culturalmente institucionalizada que ainda se fazia sentir no dealbar da Espanha pós-franquista.

Serve isto para dizer que estamos perante um perfeito exemplo do cinema feérico e provocador de Almodóvar, principalmente o da primeira fase da carreira, quando a disponibilidade do realizador para a ousadia e tácticas de choque estava no auge. A título de exemplo, recordem-se as sátiras sexuais iniciais - "Pepi, Luci, Bom e Outras Raparigas Como a Mamã" (1980) e "Labirinto de Paixões" (1982) -, os estudos sobre o desejo erótico e as diferentes formas de amar, no brilhante "Matador" (1986) ou em "A Lei do Desejo" (1987), e as observações violentamente cáusticas da realidade à sua volta, nomeadamente os olhares "terroristas" sobre o catolicismo - "Negros Hábitos" (1983) - e os "media" - o mal-amado "Kika" (1993).

Em "Que Fiz Eu...", Almodóvar utiliza então as suas peculiares sensibilidades para traçar o retrato de uma família disfuncional, no qual são visíveis as habituais marcas do cineasta. Desde logo, o gosto pelo "kitsch", presente não só nas cores primárias do genérico (repetidas depois nas luzes dos néons publicitários que banham constantemente a casa de Gloria, dando-lhe fortes tonalidades vivas de azul e vermelho), mas também nos episódios do anúncio de TV e da canção que nela vemos ser interpretada (em "playback", pelo próprio Almodóvar e Fanny McNamara, elementos de um lendário duo "pop" travesti do início dos anos 80...).

Depois, aliado a esta exuberância visual, o cultivar de um tipo de humor singular, entre o grotesco e o escabroso, que não recua perante o risco do mau gosto, antes o acolhe de forma deliberada (veja-se a cena em que Toni vomita em cima da avó e recorde-se que uma das principais influências de Almodóvar é o amigo John Waters, o "papa" do "trash"). Finalmente, a opção por uma narrativa dinâmica, com os "gags" divertidíssimos a sucederem-se em cenas curtas e incisivas que o realizador monta com mestria.

Mas não é só a instituição familiar que está debaixo de fogo, já que toda a sociedade moderna (à deriva, de onde estão ausentes quaisquer valores morais ou éticos) é dinamitada. A classe trabalhadora será a principal visada (basta olhar para a inacreditável família de Gloria; para Cristal, a prostituta viciada em heroína que rouba cheques aos clientes; ou para a outra vizinha, que martiriza a filha, Vanessa, por esta lhe lembrar o marido que a abandonou), mas os estratos mais elevados (o casal de escritores alcoólicos e falhados - ele considera-se um "azarado", ela é cleptomaníaca - e a cantora Ingrid Müller - "a Juliette Greco alemã" -, diva acabada, por quem António está perdidamente apaixonado, à beira do suicídio) também não saem ilesos desta paródia selvagem e perversa.

No centro de toda esta colecção de excêntricas personagens, encontramos Gloria (fabulosa Carmen Maura, a primeira diva de Almodóvar), uma das figuras mais fascinantes da obra do realizador espanhol: desejosa de escapar a uma vida infernal de repressão, está constantemente à beira do colapso, mas acaba sempre por exibir apenas uma resignação cansada (é o expoente máximo de um dos aspectos mais curiosos do filme: a forma lacónica como todos encaram, com a maior das normalidades, a loucura à sua volta).

Quando finalmente "explode" (mata o marido com uma pata de presunto...), abrem-se as portas da libertação e percebemos que o filme é, acima de tudo, a odisseia de uma mulher em luta pela sua independência (aqui Almodóvar diz-nos que, apesar do fim da ditadura, durante os primeiros anos da Espanha democrática as mulheres ainda estavam longe de ser livres).

É uma ideia que sai reforçada pelo facto de as únicas personagens verdadeiramente negativas serem duas figuras de autoridade masculinas: o energúmeno marido de Gloria (para quem a mulher não passa de mero objecto e que nem dá pela falta de Miguel quando este sai de casa, depois de ter sido "adoptado" por um dentista pedófilo...) e o polícia com problemas de impotência que chantageia favores sexuais a Cristal, prometendo não a prender pelo consumo de heroína.

Ao mesmo tempo burlesca e trágica (repare-se, logo no início, no encontro sexual frustrado, muito "O Último Tango em Paris", ou na música tristíssima que acompanha a sofredora dona de casa nas suas deambulações pelas farmácias, na vã tentativa de comprar as tão necessárias "pastilhas"), Gloria é uma heroína feminina (e feminista) de proporções clássicas. A única relação significativa estabelece-se entre ela e Vanessa (que exibe estranhos poderes mentais, numa deliciosa referência ao "Carrie" de De Palma), naquele que é o momento mais comovente do filme: "Então, adopto-te eu a ti", responde-lhe a criança depois de Gloria ter dito que não a podia adoptar por também não ser boa mãe.

Quando a sogra (fanática religiosa que leva para casa um lagarto a quem chama "Dinheiro", por ser aquilo de que mais gosta, "além de madalenas, sacos de plástico e cemitérios") e Toni partem para a aldeia (para construir um rancho, ideia surgida depois de verem no cinema o "Esplendor na Relva", de Kazan, noutra citação saborosa de Almodóvar), Gloria assume-se finalmente como dona do seu destino (algo que não é contrariado pelo regresso de Miguel: será mais uma recompensa, a prova de amor que até então nunca tinha sido dada).

Fica assim cumprido o programa desta comédia negra escandalosamente divertida, um híbrido que mistura, com assinalável mestria, os mais diversos registos, da farsa ao melodrama, do fantástico ao puro delírio surreal. O resultado poderia mesmo inscrever-se num novo género, o "surrealismo (ou irrealismo) social"...

Gica

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